terça-feira, 13 de agosto de 2013

Viva a revolução

- Já faz algum tempo que não falamos.

Fiquei mudo. Não tinha nada a dizer.

- Ainda mais com alguém tão querido, tão seu... Não é?

Olhei para cara dele. Tudo que eu via era os seus dentes amarelos em meio aos lábios vermelhos como sangue. Um sangue que via brotar a cada palavra que ele me dizia.

- Você ainda me culpa pelos... acontecimentos? Você esqueceu que era a sua mão lá também?

Eu não aguentei mais - CHEGA.

- Mas eu mal comecei...

- É sempre isso. Qual o prazer que você sente em me lembrar disso?

- Nenhum.

- Então porque sempre voltamos a isso? No fundo você quer me ver sofrer. É só isso.

- Não. Em absoluto. De forma alguma sinto prazer em vê-lo sofrer. Só quero que admita: você fez tudo junto comigo.

- Seu filho...

- Sem agressões, por favor. Vamos lembrar o que aconteceu, vamos?

Eu não respondo. Eu abro a boca, mas minha voz se emudece.

- Ótimo. Nós estávamos... Deixa ver... Em frente ao palácio do governo, era isso mesmo? Claro que era... Você prefere assim, com toda essa carga dramática e eu fingindo que tudo está lentamente se desanuviando na minha cabeça, não é? Fazia frio, não?

- Não. Estava bem quente.

- Ah, viu? Você lembra! Engraçado isso, não? Eles acham que você "bloqueou" as memórias destes acontecimentos... Você deveria ganhar um prêmio pela sua ótima atuação.

-  Eu lembro de tudo. Cada detalhe. Lembro do cara de mochila na minha frente, com a máscara do Guy Fawkes e boné dos Pokemons. Lembro da namorada loira e gorda dele enrolada na bandeira do nosso país. Lembro do pivete de chinelos que estava ali só pela farra. Lembro dos verdadeiros ativistas políticos. Lembro da minha cabeça raspada e do gosto do sangue. Sangue dos policiais que eu matei. Sangue do cara de boné dos Pokemons que eu matei. O sangue de todos aq...

- Ah, pára com isso! Que coisa piegas! Eu lembro, eu lembro... Parece uma matraca! Que bobagem! Essas pessoas... Que exagero seu... Parece até que você matou eles com as próprias mãos...

- EU SEI O QUE EU FIZ. Eu joguei o molotov neles. Eu fiz aquilo com as minhas próprias mãos. Eles morreram por minha causa! Eu detonei os explosivos. Eu fiz tudo isso.

- Ah, quéisso? Eles estavam no lugar errado, na hora errada... O que você fez foi pela revolução, lembra? Ah, amada revolução...

Revolução... Milhares de pessoas reunidas pedindo revolução. Adolescentes gritando e exigindo a revolução.

E o que eles sabiam disso? E o que realmente eles sabiam disso ou sabem disso? Nas suas vidas de videogame, nas suas canetas coloridas, seus DVDs, seu mundinho de sitcoms, sua rebeldia velada de rede social ou de VJ de Web... Que rebeldia é essa que admite que para uma revolução é preciso "sujar as mãos"? Que rebeldia é essa que não sabe é o que ficar horas, dias, semanas, sem água potável, eletricidade ou comida? O que eles sabem disso?

- Você ensinou a eles. Não foi?

- Eu... Eu... Eu não ensinei nada. Eu só matei. Matei gente inocente. Matei gente culpada também.

- Em nome da revolução, é claro. Agora, porque você fica assim? Era a revolução, não?

- Olha aonde a gente tá agora em nome da revolução... Olha! Olha pra mim, desgraçado! Olha o que você fez! Você iniciou tudo isso! Você me fez acreditar! Você disse que era certo! Que nós tínhamos que lutar! Seu vídeos! Suas falas!

- Quer falar de culpa? Ótimo! Eu sou tão culpado quanto você! Eram as suas mãos! As mesmas mãos sujas que mataram crianças em nome da revolução! As mesmas que diziam que aquelas mulheres deviam sofrer um estupro político! Sentir a força pulsando da massa proletária no seu interior! Lembra disso, pervertido? Lembra? Eu estava lá do seu lado! Eu lembro de tudo... Tudo. E quer saber: é claro que eu adorei tudo isso... Hahahahahhahahah

Eu levo as mãos até o pescoço dele. Lento, eu aperto. Devagar, mas firme. Força agora. Quase lá. Quase lá...

Uma voz de fora retumba na cela:
- ABRAM A CELA 4256.

A porta se abre e a luz forte do corredor inunda meu rosto.

- Prisioneiro 4256. De pé.

Eu levanto devagar.

- Foram 30 dias de solitária João Paulo.

- Sim senhor.

- Espero que isso tenha te acalmado. Vamos, pise na linha amarela e aguarde.

Eu espero. Eles fecham a solitária. De dentro eu escuto... Ele cantar:
Let me please introduce myself 
I'm a man of wealth and taste 
And I laid traps for troubadours 
Who get killed before they reached bombay 
Pleased to meet you 
Hope you guessed my name, oh yeah 
But what's puzzling you 
Is the nature of my game, oh yeah, get down, baby

Lentamente eu vou me afastando, junto com o guarda. E eu ouço;
- Não demora João... Eu posso ir contigo, mas prefiro ficar te esperando... Volta logo tá? Eu tô bem pertinho... Te esperando...

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