segunda-feira, 29 de maio de 2006

Eu vi

Pode parecer estranho, mas, eu juro, é a mais pura verdade.

Eu estava sentado enquanto esperava o ônibus. Havia uma garotinha loira com um pedaço de vassoura na mão, provavelmente usado para se defender. Ela parecia uma menina de rua pelas roupas pobres que usava. Tinha até um ar angelical demais, sabe, aquele tipo de pessoa que você acha que não devia estar ali. Ela ficava circulando entre o pessoal que aguardava o ônibus.

Já era tarde eu estava cansado demais para ir pra casa a pé. Olhei em volta e percebi que éramos apenas 6, 5 aguardando o ônibus e a menina de rua. Eu estava com olhar turvo de tanto cansaço. Sentado, eu tentava não dormir e ficar atento. Tinha 3 caras uns 3 metros a minha frente, uma garota, muito bonita e um cara sentado no meu lado esquerdo, distando pelo menos uns 5 metros de mim.

Os rapazes conversavam animadamente sobre rock segundo minha audição extremamente prejudicada pelo cansaço podia distinguir. A jovem bonita era uma morena bem alta e tinha um ar cansado. Segurava muitos livros e parecia triste, sei lá porque. A garotinha loira passou a correr em volta do pessoal, acho que brincando. Eu olhei para esquerda e o cara sentado parecia que estava usando uma capa-de-chuva cinza, mas eu não tenho certeza. Claro que eu pensei, "pô, o cara tá com uma capa de chuva, nesse calor, só pode ser doido! A única coisa que me preocupa é pra quê o capuz?". Ainda assim, não me importei de ficar por ali ao lado dele. Aliás, acho que se caísse uma bomba naquela hora eu não me importaria também. Eu me recostei no banco e devo ter cochilado.

De repente, senti um calafrio, uma espécie de vento frio, sabe, aquele que arrepia a alma? Pois é, acabei abrindo os olhos, olhando ao redor e passando os braços em volta do próprio corpo para me proteger do frio. Aí eu olhei e os 3 caras estavam atacando a moça! Eles pegaram e atacaram ela, assim, do nada! Aí, enquanto os 3 mantinham ela quieta no chão, a garotinha "angelical" começou a dar pauladas nela com o pedaço de vassoura. Aquilo me acordou! Dei um pulo! Fiquei olhando aquela cena e pensei "Meu Deus, eu não posso fazer nada!", então eu olhei para o lado para pedir ajuda pro cara que estava sentado a minha esquerda e ele não tava mais lá. Olhei de novo pra moça que já tinha tido a roupa quase toda rasgada, e de repente, tava lá o cara de capa! Ele chutou um dos caras e jogou os outros dois pro meio da rua. Restava a garotinha loira que parecia não estar nem aí pro que tava acontecendo. A garotinha loira parou e, de repente, voou pra cima do cara de capa gritando umas coisas muito esquisitas que eu não entendia e acertou ele com o pau. Ele pareceu não ter sentido e, com uma mão, agarrou o pescoço da garota. Neste mesmo momento, o cara atirou a garota contra a frente do ônibus que tinha acabado de chegar. Os outros caras estavam longe do ônibus e parecem não ter sofrido nada. Eu olhei perplexo para aquela cena e tentei ver o rosto do cara de capa, mas não teve jeito. A garota se espatifou toda contra o vidro do ônibus. O motorista quase teve um treco. Ainda cheguei ali perto para ver a garotinha, mas não tive coragem. Olhei em volta e o cara de capa já tinha sumido, naquela confusão. Aí vocês chegaram.


O delegado dá uma longa tragada. Ele me olha, de cima à baixo. Ele não esboçou sequer uma reação, parecia que nem estava me ouvindo. Acho que ele não acreditou em uma palavra do que eu disse.

- Libera o guri.

Os inspetores olharam pra ele, surpresos.

- A moça confirmou toda a história dele. Vai embora, guri. Tu não tem nada com isso.

- E a moça como está? - perguntei.

- Ela vai sobreviver.


Já na rua, ando umas 2 quadras até o local combinado.

- E então?

- Cara, tu ainda me mata de susto! Porra, não faz mais isso! - Digo eu, gritando.

- Desculpe.

- Qual é a próxima parada?

- Chega por hoje.

- Ótimo. Um só hoje. Ainda dá pra chegar em casa e assistir o jogo.

- Jogo?

- Sim, o futebol.

- Ainda não entendo o que podes ganhar assistindo estas coisas vulgares...

- Olha só: eu te ajudo, por que tu salvou a minha pele. Me mostrou os demônios. Eu enxerguei. Me ensinou a usar meus poderes mentais. Eu aprendi. Pediu para eu ajudar a "purificar o mundo em nome dos anjos da vingança"...

- Esperança.

- Ah, é... E tu disse que não ía interferir na minha vida. Pois é, não interfere agora que eu quero ver o jogo!

- É uma futilidade.

- É. Minha futilidade. Agora, vê se não enche o saco, tá?

- Que saco? Não vejo saco algum para encher? E encher de quê?

- Pra um anjo tu é bem tapado, hein? É o seguinte...

Enquanto isso, o bêbado jogava fora a última garrafa de uísque após assistir atentamente a discussão de um garoto com o ar sobre anjos, vingança, futebol e uma capa-de-chuva que teimava em sair de dentro da sua mochila.

quinta-feira, 25 de maio de 2006

Encontro

Hoje eu acordei cedo. Olhei em volta e tudo estava exatamente como sempre.

A buzina do caminhão continuava lá. Tocando. Tocando. Tocando.

Levantei da cama. Não abri a janela pois continuava chovendo. E ainda faltavam 10 horas.

Decidi pegar o sabonete na despensa. Afinal, ele não estava no banheiro. De novo. De novo.

O chuveiro pingava. Como sempre. E ontem eu arrumei o registro. Como sempre.

Liguei a TV enquanto ela dizia "... e agora nossos comerciais.". Novamente. novamente.

Eu decidi subir até o telhado. Assim eu podia ver o atropelamento. O rapaz com a flores. O ônibus 575. A menininha brincando com a mochila nas costas.

De lá eu vi os cães. Eu ficava olhando eles. Vendo como andavam em bandos. E o homem. O homem em volta. Batia nos cães. E eles quietos. Submissos...

O QUE?! Os cães latiram? Eles latiram? Porque hoje eles latiram? Eles... eles nunca latem!
Eles estão atacando o homem! Meu Deus! Eles...

Desci correndo enquanto ainda tinha tempo. Eram só 10 horas. mas era tudo diferente. Eu podia sair daqui agora. Era minha chance. Um dia diferente! Um dia!

Eu corri para o banco. Rápido! Rápido! Não lembrava de nada. A velha continuava enrolada com a porta, na frente do banco. Vamos! Rápido! Rápido! Tentei passar. O segurança me barrou. Como sempre. Como sempre. Tinha que esperar.

Entrei. Preciso encontrá-la. Rápido! Ela não está na mesa. Ainda são 11 horas. O banheiro!

Entrei. Rápido! Gritos. Droga. DROGA! Eu grito:
- Eu estou aqui! Os cães latiram! Hoje! Eu ouvi! Eles latiram!

O segurança me jogou para fora do banco. Antes já foi assim. Já foi assim.

Sento nos degraus. Tenho que esperar. Tempo. Tempo. Tenho tempo.

Só as 4 horas da tarde ela aparece. Linda.
- É a hora.

Ela me olha sorrindo. Eu a desejo. A quero. Profunda e totalmente.
- Tem certeza? - ela me diz - Não foi bem isso que combinamos. Ou foi?
- Claro que foi. Você me disse.
- Você sabe que não pode me enganar. - ela falou enquanto puxava um cigarro.
- Não há necessidade disso. Você já me tem. Você sabe.
- É. Eu sei. É que adoro te ver implorar. - gargalhou ela com uma baforada de cigarro.

Fiquei ali amedontrado. Como sempre. Como sempre.

- Vai ficar aí parado ou vai me acompanhar. Vamos para minha casa.

Eu fui. Lá ela me explicou tudo que eu já sabia. De novo. De novo. Tudo de novo. Ela me disse as condições. De novo.
- Eu já sei tudo isso!
- Certo. Não precisar se irritar. Para ter certeza, você vai ficar aqui comigo. Até as 9 da noite, não é mesmo?
- Está bem.

Ela me trouxe um bolo. Comemos e tomamos café. Ela me contava como andava atarefado e disse que não tinha esquecido de mim. Apenas era difícil para ela aceitar que pelo menos uma vez ela errou. Por algum motivo estranho, ela tinha se confundido. Eu argumentei que sua profissão deveria estar sujeita a isso afinal, eram tantos que queriam a sua atenção ao mesmo tempo, deveria ser complicado.

Ela sorriu e se aproximou. Disse que o que mais gostava era da minha companhia. Gostava de conversar comigo. Eu era sempre diferente. Isso a deixava feliz. Sua boca se aproximou da minha. Seu perfume me inebriava. Eu a queria. Beijei sofregamente seus lábios frios. Eu a queria. Era tudo que eu queria. Como sempre. Como sempre.

Fizemos amor. Muitas vezes. Ela dormia tranquila. Eu me sentia estranho. Sentia um alívio. Havia tirado um peso do meu peito. Eram 9 horas. Era a hora. Novamente.

- Chegou a hora.

Ela levantou devagar. Olhando profundamente nos meus olhos.
- Eu não entendo. Olha tudo que temos. Porque quer ir? Você me ama. Admita.
- Não. Só quero ser livre.

Ela levantou e acendeu outro cigarro.
- Fica. Eu te amo.
- Você sabe que não pode.
- Eu posso tudo. Você já devia saber.
- Me deixa ir. Você pode conseguir quem quiser.
- Eu só quero você. Mais ninguém.
- Por favor. A enternidade é longa demais para mim.

Ela suspirou fundo.
- Está bem. Me dá um beijo. O último de hoje.

Fui ao seu encontro. Novemente eu sentiu o seu hálito gelado e adorei. O beijo da Morte é doce. Fácil de se querer. Eu senti a vida se esvaindo. Escorregando pelas minhas entranhas. Devagar e calmamente. Um torpor. Um fim. Finalmente. O dia chegava ao fim.

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Hoje eu acordei cedo. Olhei em volta e tudo estava exatamente como sempre.

A buzina do caminhão. Tocando. Tocando. Tocando. E ainda faltavam 10 horas.

O sabonete não estava no banheiro. De novo. De novo. E o chuveiro pingava. Como sempre. Como sempre.

Eu vi os cães. E eles quietos. Submissos... Como sempre. Como sempre.