terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Sensível

23 de Dezembro

A neve começou a cair cedo naquele dia. Era só um dia como outro qualquer, frio o bastante, mas que não era ruim. E eu realmente trabalhava bastante, mas tinha certeza que não tinha nascido para fazer isso. Eu preferia calcular. Naquele dia, meu colega parecia muito inquieto e pertubardo durante a realização das nossas tarefas costumeiras.

Depois de algum tempo observando-o decidi perguntar o que estava acontecendo. Ele ficou bastante surpreso e pareceu se fechar ainda mais apenas me ignorando. Umas 3 horas depois, durante o intervalo, ele veio falar comigo. Ele então contou como estava preocupado com a sua esposa. Devido às circunstâncias, ele não a via há muito tempo. Ela era jovem, e eles tinham uma filha de apenas 11 anos. Ele tirou uma foto surrada de tanto manuseio de dentro de uma carteira de couro (em estado não menos deplorável). Na foto, estava a filha dele ao lado de sua esposa. Ambas eram muito bonitas. Tentei animá-lo, dizendo que ela tinha provavelmente puxado a mãe. Ele sorriu amarelo.

Voltamos a trabalhar e no outro intervalo ele se aproximou e decidiu dizer o que se passava. Antes de chegar, há alguns meses, sua querida filha tinha caído em um lago muito gelado, vítima de uma brincadeira inocente feita pelas amiguinhas. Após algum tempo ela havia ficado muito doente. Ele acabou com tuberculose e ele acompanhou o desdobrar da doença da filha a cada dia. Ele falou que a viu definhar, minguar e praticamente se desfazer nos seus braços. Ele nada pode fazer, apenas andar todo este caminho de sofrimento com ela, compartilhar esta jornada. Ele a enterrou e logo depois veio trabalhar.

Então, ele perdeu contato com a esposa. Ele conversou com o médico do trabalho e pediu para alguém visitá-la e descobrir como estava o seu estado de saúde devido ao histórico da doença na sua família. O médico prometeu entrar em contato com um amigo para ver o que ele podia fazer por ele. Recentemente, toda vez que ele encontrava o médico, o mesmo parecia fugir dele. Finalmente, ele conseguiu conversar com ele. O médico lhe contou que o amigo tinha conseguido visitar sua esposa, mas que as notícias não eram boas. Ela tinha desenvolvido uma forte tuberculose. Perguntei quando ele tinha sabido disso. Fazia 1 mês pelo menos.

Ficamos em um silêncio durante alguns minutos. Ele tinha medo de não vê-la nunca mais. Ele já havia perdido a filha e agora perderia tudo. Ele guardava dois pequenos cachos de cabelos da filha e da esposa junto da foto, dentro da carteira de couro. Enquanto ele observava os cachos, um choro convulsivo brotou nele. Ele tinha medo de não poder mais sentir o cheiro delas. Ele chorou durante um longo tempo, enquanto eu fiquei ali na sua frente, observando.

Foi estranho. Espero que nunca mais voltemos a falar disso.

Bom, hoje já encaminhamos pelo menos 300. Nossos superiores estavam com pressa hoje e acabamos não separando as crianças das mulheres. Levamos pelo menos 180 mulheres e crianças ao "banho". Meu colega conduziu os restantes, todos homens. Ele quebrou 2 mandíbulas, 3 braços e 5 pernas. Eu tinha que admitir o talento dele para isso. Eu só dei uns tapas em uma menina loirinha e na sua mãe. Estou ficando mole.

Se continuarmos assim seremos cumprimentados pessoalmente. Meu colega pareceu feliz com os meus cálculos. Isso deve animá-lo. Deve ser muito difícil acompanhar a trajetória de morte de uma criança, sua filha, tão de perto.

Dachau, 1940.

Um comentário:

  1. A falta que esses contos deixarram...
    Bom ter a inspiração de volta!
    Abraço

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